ELEIÇÃO PARA A REITORIA DA UNIR SOB SUSPEITA
Contrariando as regras do edital, software espião expôs votos de eleitores, que deveriam ser sigilosos, e muitas outras irregularidades foram apontadas em recurso que pede a anulação do pleito.
Com vários “vícios de procedimentos” apontados em recurso junto ao Conselho Superior Universitário (Consun) da Universidade Federal de Rondônia (Unir), é grande a chance de o resultado da eleição realizada no último dia 21 de dezembro para a escolha de reitor e vice-reitor da instituição ser contestado na Justiça. Atos ilegais teriam sido praticados no processo, inclusive pelo atual vice-reitor no exercício da reitoria, professor-doutor José Juliano Cedaro, que numa intrincada cadeia de comando que se inicia no Sie (Sistema Interno de Eleições), passa pela DTI (Diretoria de Tecnologia da Informação) e desemboca na própria reitoria, é quem nomeia os profissionais que atuam na linha de frente no processo de consulta. Juliano, além de reitor, foi o principal cabo eleitoral de uma das candidatas, para quem gravou vídeos pedindo votos, além de se posicionar também como membro da comissão de apuração, o que, para membros da comunidade acadêmica, evidenciou “forte conflito de interesses”.
Em reunião do Consun realizada na terça-feira (23), os conselheiros da Unir apreciaram recurso administrativo de um fiscal contra o resultado da votação. Conforme se observa na gravação da reunião (disponível na íntegra no Youtube https://www.youtube.com/watch?v=yuawT-05c1Y), o pedido de impugnação apontou vários vícios de legalidade no processo, dentre eles o descumprimento de regras do edital de votação, a participação de pessoa sem vínculo funcional com a Unir, a apuração de votação feita sem a presença dos fiscais e fora da sala onde estava a comissão responsável, o relatório de apuração de votos sem valor legal por não atender critérios da legislação vigente, a ausência de sigilo de voto por meio de emissão de comprovante de votação, o erro de contagem de votos pelo sistema SiE e até mesmo a participação do reitor em exercício na apuração da votação sem ser membro da comissão eleitoral.
Para cada irregularidade listada, o fiscal teria apresentado provas documentais, solicitando ao Consun a realização de uma nova votação com urnas eletrônicas da Justiça Eleitoral. Um membro do Conselho foi responsável por relatar e apresentar parecer ao requerimento de impugnação da votação. Apesar de não acatar no mérito o recurso administrativo, o conselheiro relator concordou com a existência de irregularidades, concluindo que as mesmas precisam ser corrigidas na próxima eleição e propondo a abertura de um processo separado para apuração da conduta do atual reitor.
Conforme se observa na reunião disponibilizada no Youtube, após a leitura do recurso administrativo e do parecer do relator, seguiu-se uma discussão entre os demais membros do Conselho, com indicação de possíveis irregularidades adicionais no processo de consulta. Um conselheiro questionou se o Reitor não estaria impedido de presidir a reunião por ter sido citado no processo. O Reitor indeferiu a questão de ordem, justificando que ser citado no processo não seria motivo suficiente para seu impedimento. Outro conselheiro compartilhou a tela do SiE e mostrou que havia votos com o número válido de um candidato que foram registrados incorretamente como brancos ou nulos. Outro conselheiro questionou se esse tipo de registro teria sido erro do sistema de votação ou interferência humana nos resultados da apuração. Outro conselheiro afirmou que o sistema eletrônico utilizado não garantiu sigilo e que seu voto ficou exposto a quem tem acesso aos documentos da votação. Esta informação foi corroborada por outro conselheiro, que afirmou ter a lista de votos identificados de todos os eleitores a partir dos documentos disponibilizados pela DTI da Unir, o que comprovaria que o sistema não garantiu o sigilo de voto.
Essa informação foi contestada por um servidor técnico responsável pelo SiE. Segundo ele, seria impossível associar o nome de um eleitor ao seu voto, porque os dados não estariam vinculados e seria necessário um supercomputador para traduzir a criptografia utilizada no sistema de votação. O conselheiro contestou essa afirmação, e explicou como teria identificado o voto de cada eleitor. Segundo ele, no banco de dados do sistema de votação foi registrado o horário da votação de cada eleitor e o horário de registro do voto de cada eleitor. Assim, estariam organizados em ordem cronológica tanto os eleitores quanto os votos, sendo possível identificar como cada eleitor votou. O técnico refutou a explicação do conselheiro, concluindo que no máximo seria possível fazer suposições sobre o voto de cada eleitor, mas que o sigilo estaria garantido.
Dois outros Conselheiros afirmaram que seus votos teriam sido sim identificados e confirmados no sistema de votação, demonstrando a ausência de garantia de sigilo. Um deles apresentou as informações do voto por escrito para registro na ata da reunião.
Houve manifestações dos demais conselheiros, a favor e contra o parecer do relator. O presidente da Comissão de Consulta, que também é conselheiro, afirmou que confia na DTI. Uma conselheira afirmou que o fiscal teria apresentado o recurso de impugnação por motivações políticas, porque seu candidato não teria sido o mais votado, e que o sistema de votação utilizado na atual consulta é o mesmo que já foi utilizado em outras eleições internas da Unir. Outra conselheira afirmou que o recurso teria sido apresentado fora do momento adequado no cronograma do processo eleitoral. Também houve manifestação de uma conselheira segundo a qual votaria para aprovar o parecer do relator por uma questão de estabilidade institucional.
Por meio de uma votação nominal, o parecer do relator, indeferindo o recurso administrativo de impugnação do resultado da votação, mas indicando as correções necessárias para o próximo processo eleitoral da Unir, foi aprovado por 23 votos favoráveis, 10 contrários e 5 abstenções.
Por se tratar de uma universidade federal, a eleição da nova reitoria da Unir ainda depende de votação a ser realizada pelos próprios conselheiros, para compor uma lista tríplice a ser enviada para escolha e nomeação pelo Presidente da República. Mas, conforme fontes internas da Unir, o resultado da consulta tradicionalmente é apenas homologado pelo Conselho Universitário, ou seja, o candidato mais votado na consulta é o candidato que encabeça a lista tríplice.
A partir de uma observação externa à Unir e ao seu Conselho Universitário, percebe-se que a decisão do recurso administrativo de impugnação dos resultados do processo de consulta pode ter sido mais política do que técnica, visto que os eventuais vícios de legalidade indicados pelo fiscal no recurso não teriam sido contestados, mas acatados pelo relator nas conclusões do parecer.
Não está claro na gravação da reunião se o atual reitor tomará alguma medida para apurar as possíveis irregularidades do processo de votação. Não foi identificada nenhuma nota pública da Reitoria da Unir a respeitos destes fatos graves, até o momento de publicação dessa matéria, que poderá ser atualizada assim que a Unir se manifestar.
Em consulta reservada a alguns servidores da Universidade, estes afirmaram não acreditar que qualquer medida seja tomada pela atual reitoria, que já está em final de mandato e que as irregularidades do SiE já são questionadas formalmente desde 2017, quando foi identificado que o sistema não garante o sigilo do voto, que eleitores teriam votado mais de uma vez, votos foram cancelados pela comissão eleitoral e teria ocorrido a troca de fotografias dos candidatos no momento da votação, além de votos nulos associados a números válidos de candidatos. Afirmaram também que em 2020 teria sido realizada uma auditoria independente que indicou, entre outras possíveis irregularidades, que não estaria garantido o sigilo de voto, que seria possível adulterar votos no sistema e que não existiria um mecanismo de rastreabilidade para apurar adulterações dos registros do sistema de votação por usuários externos ou internos.
De fato, foi possível confirmar que as irregularidades relatadas ocorreram em 2017, conforme relatório da comissão eleitoral disponível em https://eleicoesconselhossuperiores.unir.br/uploads/81191409/EDITAL%2007%20-%20RELATORIO%20FINAL.pdf. Também foi possível confirmar a auditoria citada realmente foi realizada, conforme artigo publicado por docentes da UNIR na Revista de Administração e Negócios da Amazônia em 2021, disponível no endereço https://periodicos.unir.br/index.php/rara/article/view/6049/4096.
Por outro lado, uma busca no site institucional da Unir retorna um documento do setor de tecnologia da informação da universidade, publicado em 05/08/2020, disponível em https://www.unir.br/noticia/exibir/8571, informando que foram implementadas recomendações dos auditores, garantindo que o sigilo do voto estaria assegurado, que não haveria nenhuma informação que vinculasse o eleitor ao voto dentro do sistema, e que cada usuário logado no sistema eletrônico de votação conseguiria auditar somente seus próprios votos.
Verifica-se, portanto, que há evidentes contradições entre as informações apresentadas ao Conselho Universitário e as informações que se encontram no site institucional da Unir. Apesar do citado documento da Diretoria de Tecnologia da Informação afirmar que implementou melhorias no sistema de votação para que cada eleitor conseguisse auditar somente seus próprios votos, um conselheiro demonstrou durante a reunião, pela ferramenta “auditar” do sistema eletrônico de votação, que o voto de vários eleitores estavam registrados como nulos ou brancos, embora os eleitores tivessem digitado número válido de candidato a reitor. Portanto, nesse caso, um único eleitor (o conselheiro) logado no sistema conseguiu auditar o voto de vários eleitores, demonstrando que a alegada melhoria informada pela DTI após a auditoria de 2020 não foi de fato implementada.
Em relação ao sigilo de voto garantido pelo citado documento da DTI disponível no site na UNIR, um conselheiro contrapôs a informação de que os documentos fornecidos pela própria DTI permitem identificar os votos de todos os eleitores que participaram da votação e que poderia apresentar uma planilha com identificação de todos os votos aos demais conselheiros. De fato, o próprio recurso administrativo interposto pelo fiscal já havia citado a ausência de garantia de sigilo de voto em razão da emissão de um comprovante de votação ao eleitor, que possibilitaria identificar em qual candidato o eleitor teria votado.
Se de fato ocorreram estes graves fatos no processo eleitoral da Unir, além das eventuais ilegalidades apontadas no recurso administrativo apresentado pelo fiscal, como eventual descumprimento do edital da eleição e a possível nulidade do relatório de apuração da votação, tais fatos demandam uma apuração formal por parte da instituição ou até mesmo por órgãos de controle ou de investigação, dada a importância das eleições internas de uma universidade como a Unir, tanto para composição de sua reitoria quanto para seus próprios conselhos. Um esclarecimento destes fatos torna-se de interesse público, na medida em que tanto a Reitoria da Unir quanto seus Conselhos têm atribuição de gerenciamento, elaboração e aprovação de prestação de contas na utilização de recursos públicos provenientes do orçamento da União.
Quanto à possibilidade de identificar os votos de eleitores a partir da organização cronológica dos dados da votação, conforme um dos membros do Conselho da Unir afirmou ter realizado, de fato essa foi a técnica utilizada por uma equipe de pesquisadores da Universidade de Brasília – UnB, que conseguiu sequenciar os votos de uma urna eletrônica da Justiça Eleitoral, em teste realizado pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE, conforme disponível em https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2012/Marco/teste-da-equipe-da-unb-reforca-sigilo-do-voto. Todavia, no caso da urna eletrônica, os pesquisadores não conseguiram vincular os votos aos respectivos eleitores porque não conseguiram também colocar em ordem cronológica a lista de votantes. Portanto, se de fato é possível organizar votos e votantes em ordem cronológica nos registros gerados pelo sistema de votação utilizado pela UNIR, haveria um comprometimento do sigilo do voto. Nesse caso, uma auditoria independente poderia confirmar ou refutar essa possibilidade de comprometimento de sigilo de voto no sistema de votação em uso pela UNIR, conforme a auditoria realizada em 2020 já havia identificado.
No caso do sistema eletrônico de votação da UNIR, chamado SiE, foi possível apurar que se trata de uma ferramenta desenvolvida pelo próprio setor de tecnologia da informação da universidade, conforme divulgado em https://dti.unir.br/uploads/18181818/manual_sie.pdf. Mas não foram encontradas informações sobre registros desse sistema ou se está licenciado. Também não foi possível identificar no site institucional da Unir se houve uma nova auditoria do sistema após eventuais implementações de melhorias que o setor de tecnologia da informação afirma ter realizado após a auditoria realizada em 2020. Conforme dados disponíveis em https://dti.unir.br/noticia/exibir/17031, após finalizado o período de votação, a própria Comissão eleitoral é quem emitiria o Relatório de Votos do SiE, o que não teria ocorrido no último processo eleitoral, conforme recurso administrativo decidido pelo Conselho Universitário na reunião disponibilizada no Youtube.
Entre outros sistemas eletrônicos de votação, destaca-se como o mais utilizado por instituições brasileiras o sistema Helios Voting, desenvolvido pelo Massachusetts Institute of Technology – MIT, e atualmente em uso em várias universidades federais, institutos federais, órgãos do poder Judiciário, Defensoria Pública da União, Sociedades profissionais e sindicatos nacionais. É também o sistema utilizado para eleições em universidades estrangeiras, tais como Universidade de Harvard (EUA), Universidade de Princeton (EUA) e Universidade Católica de Leuven (Bélgica), conforme informações disponíveis em https://wp.ufpel.edu.br/votacao/sobre-o-sistema-helios-voting/.
Por fim, caberá à Unir, no exercício de sua autonomia universitária, decidir sobre a apuração de eventuais irregularidades existentes em seus processos eleitorais internos baseados em seu sistema de votação eletrônica. Por acaso, quando o Conselho Superior do Ministério Público Federal tomou conhecimento de que o sistema eletrônico Votum não garantia o sigilo de voto e não possuía recurso para rastrear eventuais alterações irregulares na votação, suspendeu o processo eleitoral para escolha de novos membros ao Colégio de Procuradores da República, conforme pode ser verificado em https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/comissao-eleitoral-adia-por-30-dias-votacao-para-renovacao-parcial-de-conselho-superior-do-mpf. Espera-se o mesmo procedimento por parte da Unir.
Procurado o sindicato dos docentes da UNIR, este informou que, em Assembleia Geral Extraordinária, realizada pela Associação dos Docentes da Universidade Federal de Rondônia-ADUNIR, na tarde deste dia 29 de janeiro, após discutir a matéria sobre a insegurança do SiE, aprovou-se por unanimidade que a ADUNIR deverá recorrer judicialmente para sanar os problemas decorrentes do uso do SiE na consulta para escolha da reitoria e impedir sua utilização nas eleições de conselheiros (que está em curso), protocolar denúncia no Ministério Público Federal e solicitar investigação deste sistema pela Polícia Federal.